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Long Review | I'm Not a Witch
22.06.2018

Da quietude das pradarias, algures na Zâmbia, irrompem os cânticos e os clamores das mulheres forçadamente exiladas pelas suas comunidades depois de serem acusadas de bruxaria. Depois destas acusações serem ‘confirmadas’, estas mulheres não podem conviver com os restantes elementos da sua comunidade, e, por isso, são isoladas numa área distante e vedada. Contudo, os seus serviços continuam a ser solicitados por aqueles que os podem pagar e o seu quotidiano é fotografado pelos turistas que julgam estar diante de um quadro etnográfico muito pitoresco e singular.

A realizadora zambiana-galesa Rungano Ryoni visitou estes ‘campos de bruxas’ na Zâmbia e no Gana, cuja perenidade é assegurada não apenas por crenças específicas, mas também pela misoginia. A partir de uma acusação não fundamentada, as mulheres são condenadas a passar a vida nestes campos, dos quais não podem fugir, pois existe a crença de que, se o fizerem, acabarão por ser transformadas em cabras. Shula (interpretada por Maggie Mulubwa) é uma rapariga de nove anos que, após sofrer esta acusação, não o nega nem o confirma imediatamente. Todavia, o medo acabará mais tarde por a forçar a ‘assumir’ essa condição, depois de ser enclausurada numa casa numa espécie de ritual colectivo.

O título do filme, “’m Not a Witch”, é a frase que jamais será dita por Shula, que, aliás, se refugia no silêncio como tentativa de se defender do ódio que paira à sua volta e de todas as pessoas que a cercam. Nyoni não procura tão-só registar o isolamento destas mulheres das suas comunidades, mas também o oportunismo daqueles que, sendo externos a esse círculo, se aproveitam dessa condição como negócio, como Mr. Banda (Henry BJ Phiri) que se empenha em difundir os prodígios de Shula com um aparato que depressa chama a atenção da comunicação social. «E se ela for apenas uma criança?», surge a pergunta durante um programa de televisão para o qual Shula e o seu ‘tutor’ são convidados.

Marcando a estreia de Rungano Nyoni no formato longa-metragem, “I’m Not a Witch” apresenta sequências inspiradas num registo documental que tenta imprimir mais verossimilhança à narrativa. É através de Shula que o espectador se conecta à história e sente a dor e a injustiça de que estas mulheres são alvo, todavia, existe ao mesmo tempo um distanciamento que possibilita ao espectador uma visão mais abrangente deste universo e de como as crenças e os mitos moldam as estruturas sociais. No final, o filme lega-nos um panorama oscilante entre o trágico e o absurdo, numa sucessão de quadros onde a fantasia e o realismo se fundem, desde os planos gerais das paisagens áridas e selvagens aos close-ups dos quais emanam expressões de ira, revolta, estranheza e melancolia.

 

Por Tiago Vieira da Silva

Retirado do Leuk Jornal | Edição 3 | 22 - 23 JUN 2018