New Directors | New Films
Retrospectiva
12.02.2018

O ano de 2017 foi importante para o FEST, em particular no que toca à programação de cinema. O clima estranho criado pelos eventos que aconteceram em todo o mundo no ano anterior — desde Trump ao Brexit, como também os conflitos na Síria e Ucrânia, por exemplo —, prometeu manipular e dominar a agenda de todos, e de maneira alguma estávamos prontos para ser uma excepção à regra, deixando o mundo dar mais uma volta louca sem partilharmos uma palavra nem marcar uma posição firme.

Posto isto, encontrar um tema para orientar o nosso trabalho foi sem dúvida mais fácil em 2017 do que em anos anteriores: a óbvia regressão que o planeta estava a atravessar ia tinha obrigatoriamente de ter a contribuição do FEST. Foi nesta perspectiva que lançámos a nossa “infindável” missão de procura de conteúdo provocante, criando, como fazemos todos os anos, uma plataforma para jovens artistas exprimirem os seus pontos de vista sobre o mundo contemporâneo, “alto e a bom som”.

Esta premissa tornou-se imediatamente óbvia por diferentes razões, com filmes a cobrir todo o tipo de temas e sempre com próximas ligações aos “escândalos” do momento. A função da austeridade na nossa parte do mundo não podia passar despercebida e, felizmente, houve bastantes produções a cobrir este tema, cada um com as suas visões especificas.

A competição do Lince de Ouro foi claramente influenciada por esta lógica, com dois filmes que se destacaram como “facadas nas costas” — no sentido mais positivo da expressão —, dos seus respectivos governos. Apresentámos “The Invisible Hand” de David Macián, uma alegoria criativa e inteligente sobre as relações laborais na Espanha contemporânea que ousou demonstrar como os direitos dos trabalhadores foram prejudicados nesta era de perplexidade digital. O filme retrata uma série de diferentes trabalhadores expostos numa espécie de “reality show”, onde um barulhento e agressivo público os instiga constantemente, e um certo chefe desconhecido que se distribuiu em jogos estranhos que provocam conflitos internos entre os trabalhadores. “Park”, por Sofia Exarchau, não foi menos impressionante nesta perspectiva, apresentando uma Grécia moderna como uma ruína do que foi outrora. O filme relata a vida de um grupo de jovens que passam o seu tempo a vaguear nas ruínas da Vila Olímpica de 2004, executando jogos viciosos e alimentando uma sensação inevitável de falta de perspectivas futuras, até que alguns deles tentam atravessar para ao outro lado: a Grécia cartão postal para turista ver. O tema da austeridade foi também abordado através da comédia negra que encerrou o evento: “The One Eyed King” do realizador espanhol Marc Crehuet — um filme que arrisca usar as convulsões sociais presentes na Espanha, causadas pelos anos de austeridade —, criando um enredo que mistura gargalhadas com uma clara crítica à política de Mariano Rajoy.

 

Os direitos LGBT também não estiveram ausentes, começando com “Tom of Finland” de Dome Karukoski, um filme biográfico que retrata a vida de Touko Valio Laaksonen — um ícone da cultura homossexual — que teve de enfrentar inúmeros obstáculos e perigos devido à sua arte e sexualidade. Igualmente relevante foi a obra da nova sensação do cinema independente americano Miles Joris Peyrafitte, cuja primeira obra, “As You Are”, repleto de nostalgia pela era grunge, transportando-nos para a vida de dois jovens discretos que desenvolvem uma relação próxima — que é inevitavelmente abalada por um triângulo amoroso e um crime sangrento.

Ainda na competição de longas, dois filmes tentaram um novo olhar sobre a alienação urbana contemporânea, cada um à sua maneira. O filme de Laura Naysmith, “8:30”, fê-lo do modo mais experimental possível, criando um universo alternativo — onde um homem perfeitamente banal dá por si num ciclo que o transporta para uma realidade paralela, durante a sua viagem diária de comboio para o trabalho. Ao mesmo tempo o assolador “Needle Boy”, do director dinamarquês Alexander Bak Sagmo, que retrata a vida fatídica de um jovem que se considera um monstro e decide embarcar num massacre escolar.

A Rússia de Putin esteve também sob a nossa esfera de influência, através do método mais inovador possível. A longa metragem de documentário “The Road Movie”, de Dimittri Kalashnikov, colectou imagens gravadas em todo o país para transformar o que aparenta ser uma comum compilação de acidentes de estrada e estranhos eventos presentes no youtube, numa profunda análise do espírito russo governado por um autocrata. O filme eventualmente seduziu o júri ao ponto de receber o prémio de melhor documentário. Em termos drasticamente diferentes, na nossa competição de Lince de Prata, uma curta-metragem de documentário chamado “Days of Youth”, de Yulia Lokshina, levou-nos a um acampamento de férias na Rússia onde várias crianças são instruídas em ideais militares e nacionalistas, formando assim a espinha dorsal da lógica de Putin.

Como se antecipando o movimento #metoo, que hoje domina a arena global, o vencedor do Lince de Ouro, “Filthy” da realizadora checa Tereza Nvotová, ofereceu um olhar original sobre o tema da violação, com um enredo sobre o tumultuoso processo que é a recuperação de uma jovem vítima, cativando a imaginação dos júris como nenhum outro filme. Numa lógica idêntica, “Farewell to Flesh”, de uma das mais promissoras realizadoras brasileiras, Julia Anquier — revelou-se como um filme extremamente confiante e determinado, onde uma violação e consequente vingança culminam num dos fins mais surpreendentes e inesquecíveis de 2017.

Ao longo do programa insistimos em apresentar o filme “State of Emergency”, de Tarek Roehlinger, um tenso thriller focado na paranóia sobre o terrorismo; “A New Home”, de Ziga Virc, que nos ofereceu uma perspectiva sobre como crise dos refugiados afectou a sanidade colectiva de vários povos europeus; “The Fear Installation”, de Ricardo Leite, que nos apresentou uma visão sobre repressão por parte do estado; e “Homeland”, de Sam Peeters — vencedor do Lince de Prata para melhor curta de documentário —, forçando-nos a olhar para os subúrbios da Bélgica e o seu fascínio pela extrema direita.

O tema para o FEST 2018 ameaça levar-nos a viagens similares, sendo que desta vez é focado no conceito das fronteiras, sejam elas físicas ou imaginárias, ambas num senso de separação de linhas e plataformas de transgressão. Assim sendo, as audiências do FEST podem esperar um programa de cinema determinado a desafiar algumas ideias pré-concebidas. Considerem-se avisados!