New Directors | New Films
Cineasta do Mês | Cristele Alves Meira
22.02.2017

Numa altura em que assuntos como raça, imigração e a mulher são os tópicos do dia, é uma feliz coincidência que tenhamos decidido há algum tempo criar um foco num novo cineasta cuja filmografia, directa ou indirectamente, embraçam vários destes assuntos. E, como se isto não bastasse, a nossa cineasta do mês fá-lo por caminhos deveras subliminares. Estamos satisfeitíssimos por virar as luzes para uma das vozes portuguesas mais impressionantes do novo cinema, que em 2016 chamou a atenção da nova cena cinematográfica num dos seus melhores períodos na história. Em Fevereiro, a nossa cineasta do mês é a jovem realizadora portuguesa Cristèle Alves Meira.

Remexer nos desenhos da mobília da tua avó pode ser uma ocupação quer perigosa, quer inspiradora. Podemos estar a descobrir muito mais do que peças soltas da história pessoal da nossa família. Perguntem à Cristèle Alves Meira, uma jovem cineasta portuguese cuja curiosidade sobre o mundo e sobre a história da sua própria família a inspiraram a embarcar numa viagem que eventualmente a fariam dar um grande salto na sua carreira cinematográfica que é agora mais do que promissora.

De alguma forma, um típico exemplo da gigante comunidade portuguesa em França, estimada em mais de um milhão, Cristèle não estava certamente imune ao seu ambiente, combinando as suas experiências pessoais numa sociedade multicultural com uma curiosidade sã sobre as suas próprias raízes, que ironicamente estavam ambas conectadas aos caminhos pantanosos da história. “Sempre tive uma fascinação pela a África. Cresci nos arredores de Paris ao pé de bairros africanos. Miúda, os meus melhores amigos de escola eram africanos.”

Depois de uma primeira viagem a África, a Cabo Verde, para trabalhar no espectáculo “The Blacks” de Jean Genet, Cristèle conseguiu desenvolver o interesse numa identidade racial, que eventualmente a levou para Angola. “Foi a primeira vez que a minha cor tinha uma influência sobre as minhas relações sociais. Vivi numa favela com angolanos espetaculares, mas também senti o racismo muito forte, ligado à nossa história passada. Acho que a razão principal que me faz ir filmar as ex-colónias é esta minha vontade de compreender, de me ligar de novo com as minhas raízes portuguesas. Quando decidi ir filmar em Angola, tinha uma ideia clara, cortar com o tabu que representava Angola na minha família. Sempre vi os meus tios com aquela tatuagem estranha no braço, vestígios da guerra. E um dia foi o choque: encontrei numa gaveta da casa dos meus avós uma foto de um tio meu vestido de tropa portuguesa, sorrindo para a foto atrás dele com um monte de crianças mortas. Esta imagem revoltou-me a sério e motivou o meu desejo de ir ver o que é Angola! Tudo que é segredo e escondido merece ser filmado.”

O resultado deste processo foi “Born in Luanda”, uma curta-metragem selecionada para o FEST 2014, um retrato de “um jovem da rua que tenta sair da delinquência sonhando de ser um futebolista profissional”, tal como Cristèle o coloca. Filmar neste contexto não foi fácil. “Quando fomos filmar “Born in Luanda” era 2008, as primeiras eleições legislativas depois quase 35 anos de guerra civil. Foi muito difícil conseguirmos arranjar um visto para filmar em Luanda. Conseguimos ter um para 30 dias. Mas quando chegamos a Luanda, estávamos fechados em casa de pessoas ricas que não nos deixavam sair sem ser de carro de vidros fechados. Era impossível fazer um filme nestas condições. Então fomos à rua e com sorte encontramos um pintor que nos ajudou a encontrar casa numa favela. Eu queria contar a vida quotidiana de um jovem angolano de hoje, de classe média. Em 2008, Luanda estava em plena reconstrução. A classe média vive nas favelas, sem esgotos nem estradas. E assim que ficamos a viver na Chicala 2, no meio do lixo em casas de tijolos com eletricidade, mas sem água. Tudo era muito caro, um peixe grelhado com gasolina na favela era 15 dólares! E ao pé disto, o petróleo e os diamantes. Mesmo a situação política e social revoltou-me e decidi fazer um filme social em distância com a história e a política. Um retrato de um jovem da rua que tenta sair da delinquência sonhando ser um futebolista profissional. Ah, é verdade, mais um obstáculo para ultrapassar, não tínhamos autorização para filmar! Depois de 15 dias em Luanda não tínhamos gravado nada e a produção francesa estava à espera de um filme de 52 minutos para a televisão! Consegui uma reunião com o Presidente da Câmara de Luanda. A minha sorte é ele sonhar ser actor de cinema, falámos de cinema e ele pôs o carimbo numa autorização sem querer saber nada sobre o nosso filme! Contradições salvadoras!”

“Born in Luanda” viajou pelo circuito dos festivais com um sucesso considerável, mas nada comparado com o que se haveria de seguir. Em Maio de 2016 o seu nome destacou-se na cena portuguesa quando a sua última curta-metragem “Campo de Víboras” foi selecionada para a Cannes’ Critics’ Week. Tal hype é muitas vezes não merecido, mas neste caso não poderia ser mais diferente. Com tantos elementos impressionantes que criam uma atmosfera única tão rara no cinema português, o filme leva-nos para uma comunidade em Trásos-Montes estranha e nebulosa. A protagonista, Lurdes (lindamente interpretada pela actriz Ana Padrão), é uma mulher de 45 anos “imprisionada” na sua aldeia para poder tomar conta da sua mãe doente. A sua fantástica forma física e o facto de ser solteira, faz dela uma presa fácil para os homens locais e as fofocas são inevitáveis. A sua enorme vontade de escapar a uma vida de sacrifício, materializa-se eventualmente numa estranha noite de ano novo, reclamando para ela mesma um novo começo.

“Campo de Víboras surgiu do meu desejo de contar um fait divers extraordinário. Campo de Viboras é o nome de uma aldeia que existe (a 10 km da minha aldeia). E desde de pequena sempre fiquei curiosa com este nome, ouvi muitas histórias e lendas sobre as razões deste nome. E quis imaginar uma lenda urbana contemporânea a partir deste nome de aldeia. Estas histórias inspiram-me. Elas são as verdadeiras autoras deste filme!”

 

 

Seguindo a experiência em Cannes, “Campo de Víboras” começou uma imparável jornada pelos festivais de cinema, vencendo grandes prémios em eventos como Indie Lisboa, CineEuphoria e Caminhos do Cinema Português. “Fico muito contente de ver que o meu trabalho possa ser visto em Portugal e que seja premiado pela critica portuguesa que é muito exigente. Temos um cinema muito forte e sinto-me orgulhosa de poder contar pelos os filmes portugueses. Não foi fácil! A minha primeira curta “Sol Branco” foi exibida fora mais nunca em Portugal, “Born in Luanda” só foi exibido no FEST.”

Agora que Cristèle conseguiu reclamar o seu bem merecido lugar, ela não está a dar nada como adquirido. “Tudo é incerto e frágil. Não sei o que será com a minha longa. Sinto agora uma curiosidade, uma efervescência, mas ser artista é aceitar que cada vez temos que reaprender tudo de novo. Temos sempre que arriscar, se não arrisco nada ! Deve ser uma questão de vida ou de morte para a magia poder operar. As vezes sinto-me perto da folia, ser inspirado é como ter uma febre muito forte ou ser iluminado com o estado de graça que atravessa os Santos.”

Cristèle Alves Meira está actualmente a trabalhar na sua primeira longa-metragem “Alma Viva”. Quando perguntamos sobre o processo de saltar do formato curto para uma longa, Cristèle é cautelosa. “Decidi adoptar uma atitude similar fazendo uma curta e uma longa. Porque se não for assim, sinto um abismo enorme. Fazer uma longa é saber lidar com a paciência e a perseverança. Estou agora a escrever o guião, que exige umas idas e voltas permanentes e sei que até o ultimo dia da rodagem, o guião se vai modelar como o escultor modela a sua terra. Por isso, é primordial que a história que vais contar seja crucial. Tens de falar de uma coisa que é essencial para ti, para sentires sempre aquela urgência a fazer este filme. Porque tudo é muito mais longo, principalmente na primeira. Mas é uma aventura de vida incrível. Para mim, parece-me que estou a subir os Himalaias descalça, o esforço é tão pleno que sinto uma euforia indescritível!

E para acabar de responder à pergunta, os detalhes que posso revelar estão no título "Alma Viva" que deixo imaginar.”